sexta-feira, 20 de junho de 2014

A vaia e o índex

Por Luiz de Aquino
Comemorar é uma palavra composta: co (juntos) memorar (lembrar). Mas seu uso, através da vida e dos séculos, ganhou o sentido de festejar – talvez porque as pessoas gostam sempre de recordar – ou mais: de “memorar juntos” –, de festejar o que foi bom. Vimos que as pessoas que festejaram os 50 anos do golpe militar que nos pôs em 20 anos de ditadura por revezamento foram muito poucos; quase o mesmo número dos que resolveram, em todo o país, manifestarem-se contra os primeiros jogos da Copa do Mundo que se realiza estes dias. Outros, porém, querem comemorar o golpe com atitudes idiotas. Uma delas é a vaia – aquela dirigida à presidente Dilma Rousseff na Arena Corinthians. Entendo que em um dos mais remotos momentos (quanto tempo durou esse momento, hem? Nem imagino...) da Humanidade, aquele em que o primata bicho sapiens entendeu que os sons emitidos pelo aparelho fonador diferiam conforme seu estado emocional e a intenção de seu anseio por comunicar-se podia traduzir algo: e inventou-se a fala, inventaram-se as palavras... Mais tarde, viria a escrita. Ao vaiar, o indivíduo viaja àquele estado primário. Os de agora querem ser distinguidos como bem-formados, que sabem pensar; mas ao vaiarem, transmudam-se em primatas afônicos, ou melhor, emitentes de sons de um só tom, de uma só emoção – a do ódio – e tornam-se antecessores dos trogloditas homens da pedra lascada. Em suma, o homem-besta, o primata ignorante e irracional. Não me bastasse o que conceituo acima, adotei, há muitas décadas, a atitude do respeito às autoridades; se a pessoa atinge um patamar, se se eleva ao cimo da pirâmide organizacional do Estado, merece respeito: essa pessoa torna-se, sim, representante de um grupo enorme a que chamamos Nação (nação é povo; país é território; e estado é a organização política – as pessoas costumam tornar essas três palavras sinônimas, mas elas são somente palavras afins, cada qual com seu significado). “Ah!”, dirão alguns, “quer dizer que ditadores também merecem respeito?”. Sim, merecem – ainda que com todas as reservas possíveis. Alguém o pôs lá e muitos o aceitaram; se a maioria, ainda que oprimida, se põe em silêncio é porque aceita; portanto, respeito tanto um Médici quanto um Lamarca – o primeiro por ter “chagado lá”, mesmo que pelas armas, e o segundo por ter se oposto a tudo aquilo, mesmo que com as armas. Não respeito é a corrupção, a roubalheira e a petulância (a petulância conduziu o presidente Collor ao confronto com o Congresso; o impeachment foi a resposta do grupo confrontado). Desrespeito também a incoerência. Mas vaia houve. E houve também a aceitação pela pessoa vaiada, pois recusou-se a discursar, como era protocolar, declarando aberta a Copa do Mundo, receosa de ser vaiada; e aceitou-a ao responder a agressão, no dia seguinte, com um discurso em tom partidário (sempre achei que um presidente da República, pelo seu papel de estadista, deve distanciar-se protocolarmente dos partidos, mas a nossa presidente, notória pela agressão às regras da Língua, comporta-se mais como cabo eleitoral do que como estadista). Dilma Rousseff deveria confiar nas pessoas que lhe devem servir de prepostas, de porta-vozes, para o exercício do discurso menor de alegação às vaias; não é papel da nossa maior mandatária nivelar-se por baixo, descer aos porões da vaia para vociferar como os jornalistas que o vice-presidente de seu partido compara a cães (e chama de jornalistas cineastas e humoristas, misturando tudo, como quem ignora as diferenças profissionais). É notório que a Opinião (assim mesmo, em maiúscula) é um instituto universal de natureza pessoal: a liberdade de opinião é um preceito basilar da democracia. Exerço-o com amplitude, mas com um cuidado simples e igualmente basilar, o de respeitar as pessoas a quem aprecio, avalio, julgo ou posso atingir, no bem e no mal. Posso opor sem desrespeito e posso admirar sem bajular – isso eu busco fazer sempre e principalmente não quero impor meu procedimento, apenas defini-lo. Eu jamais vaiaria Getúlio Vargas – nem no período de 1930 a 45, nem no de 1950 a 54 –, nem JK (que após uma vaia de quatro minutos, anotados por ele próprio, recebeu aplausos de dez minutos, dos mesmos estudantes de engenharia que o vaiaram, só porque disse: “Uma nação cujos estudantes vaiam seu presidente da República por quatro minutos é uma nação democrática”) –, nem os ditadores do tempo dos cinco-por-vinte-anos (aliás, 21; foi de 1964 a 85) nem FHC nem Dilma. Nem Collor, o mauricinho, eu vaiaria. Mas não consigo digerir o vice-presidente do PT com o seu índex de jornalistas pitbuls (sei lá como escrever isso! Nem vou pesquisar). Seu artigo é do mesmo nível das vaias. Tenho minhas escolhas políticas, claro, mas também isso há que ser exercido com a dignidade e o respeito ao próximo que formam o conjunto de comportamentos a que chamamos de ética. Se alguns dos articulistas, apresentadores, humoristas e atores interpretando personagem escrevem e falam coisas que incomodam algum partido, os partidos que os processem ou, em questões menores, que respondam a eles pelos mesmos canais, na mesma intensidade e na densidade da informação original. O que não fica bem é um partido (seu vice-presidente certamente fala por ele; ou o povo, o leitor, o eleitor entenderá assim, a não ser que o presidente o desminta – e isso é pouco provável) assacar contra uma categoria inteira, chamando de jornalistas todos os seus declarados desafetos. Até porque são muitos os jornalistas filiados ao PT e muitos não filiados que se identificam como simpatizantes – e muitos ainda há que se afastam dessa simpatia por tantas pisadas em falso com o partido, antes tão ético, agora usando salto alto nas andanças do poder. Incomoda-me que ao lado de tantas realizações sociais admiráveis os maiores do PT se alinhem em defesa de alguns membros apanhados em atos condenáveis e acusem juízes de perseguir e agir fora da lei. Isso é tão ingênuo – ou estúpido – quanto acreditar que o governo brasileiro comprou o titulo de Hexacampeão à FIFA (o empate com o México levou um torcedor goianiense a supor que, se comprou, certamente a presidente Dilma sustou o cheque na manhã do dia 17). Se Joaquim Barbosa e seus pares ministros que votaram pelas condenações julgaram à revelia da Lei, os outros poderes e o povo aceitariam isso passivamente? Isso teria validade? Encerro com um certo cansaço. É que não queria, e não quero, tecer análises e críticas aos feitos de governo. Eu apenas pediria ao ex-presidente Lula e à presidente Dilma que se mantivessem na dignidade do cargo que os qualifica. A prática partidária, tão democrática, pede, sim, em algumas circunstâncias, tomadas de posição e alguns discursos desgastantes, mas práticas que não devem ser exercidas por estadistas assim feitos pelo elevadíssimo valor do voto popular – valor esse que, sem qualquer dúvida, Dilma e Lula conhecem muito melhor que eu. (Luiz de Aquino, escritor e jornalista, membro da Academia Goiana de Letras)

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