sexta-feira, 13 de junho de 2014

Hálito novo na prosa brasileira

Por Ronaldo Cagiano
A literatura brasileira contemporânea, seja na poesia ou na ficção, tem nos oferecido bons exemplos de autores e livros de qualidade fora do hegemônico guarda-chuva desse mercado cada vez mais excludente. Além das fronteiras do monopólio das grandes editoras, estas, muitas vezes patrocinando mediocridades, corroborada por uma crítica que incensa o lixo, em detrimento do que verdadeiramente tem valor e que não encontra o merecido respaldo desse sistema tão oportunista, eivado de conchavos e apadrinhagens, há ilhas de excelência não captadas pelos críticos de ocasião, sempre tão negligentes e insensíveis com o que não é modismo. Essa é uma sensação que tenho toda vez que me cai às mãos um bom livro de um bom autor publicado por uma pequena editora, principalmente longe dos holofotes da grande mídia, e para os quais há um solene, injusto e criminoso silêncio, deixando patente que o que interessa divulgar não é o que tem valor estético, mas o que é seduzido pelo mercenarismo literário. Das obras de autores estreantes ou veteranos que tenho lido ultimamente, surpreendo-me cada vez mais e melhor, com esse oásis, livros de pequenas tiragens, publicados por pequenas editoras, que subsistem muitas vezes com esforço quixotesco, sobressaindo no meio de obviedades cultuadas pela grande imprensa e que são fruto das injunções de um mercado editorial cujo critério é a conveniência e não o essencial valor da literatura. Minhas impressões se consolidam após o contato com um jovem autor carioca, Alex Andrade, cujo livro tocou-me profundamente não apenas pela pulsão, tensão e densidade de seus contos, mas por um diferencial que reputo importante e que vejo ausente na ficção e na poesia contemporâneas de escritores badalados: o tratamento da linguagem. Pois, literatura, em síntese, é trabalho de linguagem, de depuração, de cuidado e burilamento. Em recente artigo, o poeta, professor, ensaísta e crítico Amador Ribeiro Neto (UFPB) enfatiza o valor da linguagem, reportando-se a Jakobson: “A poesia é linguagem em sua função estética. Deste modo, o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária.” Esse conceito se aplica tanto à construção do poema quanto à arquitetura do conto ou do romance e o que podemos constatar na produção contemporânea é uma literatura preocupada em apenas em contar uma história, em impor-se mais pelos arroubos formais ou impactar pelo contorcionismo vanguardeiro do que propriamente por um mergulho na linguagem, algo sem nervura ou coluna dorsal. Em Alex Andrade é nítido o rigor dessa inflexão, seu percurso ficcional não prescinde desse olhar em que a narrativa proclama o valor da linguagem como elemento primordial ao texto e à compreensão da própria história. Eu seu novo livro, cujo título não poderia ser mais sugestivo (“POEMA”, Ed. Confraria do Vento, Rio, 2013, 173 pgs), seus contos transitam pelo universo da linguagem poética, cum carga afetiva, sensorial e imagética peculiares. Mais que uma homenagem a autores e livros que são caros à sua mitologia pessoal, nas histórias de Alex há uma mirada existencial em que ao tratar de pequenos acontecimentos ou dramas pessoais e coletivos, há também uma oportunidade de refletir sobre o valor da arte, da poesia, da narrativa e do lugar – tão baldo nos textos contemporâneos – da metáfora e das sutilezas estilísticas. “POEMA” não é apenas prosa poética, porque seria reducionismo afirma-lo para definir esse trabalho que funde visão humanista do particular e do coletivo, do tempo e das circunstâncias, com um acento metafísico, com os recursos da intertextualidade, da metalinguagem e uma visão apriorística e crítica do mundo. Há de se destacar o caprichado projeto gráfico da Confraria do Vento, uma característica dessa editora carioca que tem sido rigorosa na escolha de seus autores e na confecção de seus livros, não fazendo concessões, privilegiando o que realmente tem valor. Por outro lado, fortes são os referenciais e influências de Alex de suas leituras e experiências literárias. De Rimbaud a Adélia Prado, de Manoel de Barros a Verlaine, de Leminnski a Quintana, de Drummond e Pessoa, Torquato Neto e Monteiro Lobato, até o espectro musical de Luis Tatit, há um mapeamento delicado de suas impressões como autor, como leitor e como ser, pois a partir desses gurus literários – e aqui sua prosa não se traduz em mera apologia, mas em substancial releitura crítica do próprio mundo e do ofício de escrever - adquire um sentido de observação filosófica e inquietante de tudo que nos cerca. Histórias paralelas vão traçando uma perfeita analogia com atmosferas encontradiças nos autores que revê, culminando, no final de cada conto, com um breve comentário sobre a vida e a obra de cada um deles, num roteiro para que o leitor se familiarize com suas bibliografias. Com apuro técnico, domínio narrativo, carga semântica e esmero metafórico que harmonizam forma e conteúdo, Alex Andrade, nos contos de “POEMA, sobressai com uma voz distinta e sem favor alguns às sumidades e fraudes literárias que vicejam por aí, uma escritura-tributo que ressignifica o ato literário, que além de ser uma manifestação estética, é um compromisso ético indissociável da tarefa criativa, principalmente nesse tempo em que a literatura está cada vez apequenada e aviltada pelo mais do mesmo. (Ronaldo Cagiano, escritor, reside em São Paulo)

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