segunda-feira, 26 de maio de 2014

Marcel Proust implica com os vizinhos

Por Hélio Moreira
Não há controvérsia, a coleção de sete livros que Marcel Proust (1871/1922) escreveu e que se unificam com o título “Em busca do tempo perdido”, teve influência seminal na literatura do século XX e continua encantando os leitores do século XXI. Nesta coleção de livros (mais de 3.000 páginas e mais de um milhão de palavras), escritos entre os anos de 1913 a 1927, Proust conseguiu, com o gênio inigualável da produção autobiográfica, como se fora um pintor, desenhar e ser narrador da vida e dos costumes de mais de 200 personagens, zombar da vida fútil e snobe da sociedade, da qual ele fazia parte e, sobretudo, descreveu com incrível sabedoria, o amor entre o homem e a mulher, embora ele fosse homossexual. Os biógrafos de Proust são unânimes em afirmarem que ele possuía um gênio difícil, excêntrico, arredio à aproximação de pessoas desconhecidas, introvertido e, sobretudo, irônico e mordaz; uma das características da sua personalidade e que marcou a sua existência era a sua vida em clausura, saindo, eventualmente, para algumas atividades culturais (galeria de arte, assistir concertos musicais, fortuitos encontros com amigos em restaurantes); nestas oportunidades agasalhava-se de maneira exagerada, com capotes pesados de pele. Nos seus últimos três anos de vida (1913/1917) passou a viver e a trabalhar (escrevia os manuscritos à mão, na sua cama) em completa reclusão no quarto do seu apartamento no Boulevard Haussmann, em Paris, na companhia de Celeste Albaret, sua governanta. Provavelmente a doença que ele adquiriu quando tinha nove anos de idade (asma brônquica) levou-o a assumir esta atitude, tendo em vista a recorrência de crises quando entrava em contato com substancias alergênicas ou mudanças bruscas do meio ambiente; até recentemente não existia nenhum registro histórico de possíveis entreveros entre Proust e seus vizinhos de prédio, como poderia ocorrer, tendo em vista sua permanência tão prolongada dentro de casa e principalmente pela sua ojeriza ao barulho (chegou a colocar folhas de cortiças nas paredes do seu quarto). Recentemente (2010) o Museu de Cartas e Manuscritos de Paris adquiriu 26 cartas, ainda inéditas, escritas por Proust entre 1908 e 1916 e endereçadas para uma vizinha (Madame Marie Williams), musicista que tocava harpa, esposa de um dentista e que morava no andar superior ao seu, e que foram posteriormente publicadas pela editora Gallimard de Paris (Lettres a sa voisine - Cartas a sua vizinha). Ao lado de mostrar sua finesse no trato com uma dama, ele reclama, como se fora um moto perpetuo, do barulho que havia “sobre a sua cabeça” e que não lhe dava trégua; embora as cartas sejam carregadas de ironias e até desaforos, em nenhum momento ele fugiu do tratamento polido, cortês e, principalmente, encaradas por ele, como tudo o que escrevia, como obra literária. Ele agradece por saber que ela se “preocupa com o barulho que o incomoda, porém peço que o mesmo seja moderado”; fala com ironia “ Eu sei que o encanador aparece todos os dias entre as 7 e 9 horas da manhã, esta preferência dele não é a mesma que a minha” ; indaga - “Poderia lhes perguntar, madame e doutor, para pensarem em mim amanhã e diminuírem o barulho?“; “ Poderiam ser mais moderados na hora de bater os tapetes amanhã?” Em duas outras cartas, carregadas de citações culturais e poéticas, ele reclama do barulho, com uma brilhante fantasia a respeito do silêncio. “De toda maneira, quem sabe? Eu sempre penso que o barulho poderá ser tolerável, se ele for contínuo, desde que não estejam consertando a nossa rua durante a noite, consertando seu apartamento durante o dia ou demolindo o shop da esquina nos intervalos ... quando tudo dispersa, o silêncio irá ressoar em meu ouvido ...” “São 8 horas, uma pequena luz bate no assoalho de cima, mostrando que ali o “veronal” não foi usado. Acordei muito cedo ainda para minha crise de asma, o que me aborrece não é o barulho continuo, mas sim aquilo que é jogado no assoalho”. Proust tinha consciência de que estava escrevendo uma obra de arte e precisava concluí-la, algumas vezes, junto com a carta, enviava livros e de volta recebia flores da Madame, “ Hoje o fog produziu-me ataque de asma, por isto estou com dificuldade para escrever estas palavras, estou lhe enviando meu pequeno livro” , “ Agradeço sua maravilhosa e artística carta, bem como o “bouquet” de flores que a acompanhava” Parece, pela persistência da troca de correspondência, que as queixas dele nunca ultrapassaram os limites da urbanidade, embora isto possa parecer ao lermos trecho desta carta onde ele imiscui na intimidade da vida do casal vizinho: “Sei que o Doutor viaja amanhã e já adivinho o empacotamento e fechamento de caixas. Seria possível fechar estas caixas hoje a noite? Desde que não seja entre 4 e 5 horas; se minha crise de asma terminar antes, avisarei”. Ficam perguntas a serem respondidas: - Por quê ele não falava pessoalmente com os vizinhos? As cartas eram enviadas pelo correio ou eram deixadas debaixo da porta? A harpa da Madame Marie Williams não o incomodava? (Hélio Moreira, membro da Academia Goiana de Letras, Academia Goiana de Medicina, Instituto Histórico e Geográfico de Goiás)

Nenhum comentário:

Postar um comentário