sexta-feira, 30 de maio de 2014

O voo dos Capa Negra

Por Cristiane Lisita
A indumentária estudantil em Portugal nos seus primórdios foi caracterizada pela influência dos clérigos. Desde o século XVI a veste representava um certificado honroso entre a categoria. Os demais alunos buscavam estar de forma assemelhada àqueles, cujas fardagens se desdobravam até o chão, tentando evitar olhares atentos. A batina, de cor negra, englobava a capa e a túnica, transmitindo a abnegação ou altruísmo, a morte para o orbe terrestre. A roupagem teria se consistido em legado que fora disseminado entre os estudantes, conforme acontecia em Coimbra, desde 1718, lembrando que essa Universidade se fixou definitivamente no local, em 1537, por Dom Dinis. Juízos da Revolução Francesa e Iluminismo, no século XVIII, concebem, todavia, uma espécie de movimento anticlerical, se manifestando na época pombalina, quando da reforma da Universidade, em 1772. O liberalismo impregnou uma faceta mais leve ao traje, induzindo a capa a um ideário de magia e heroísmo, não almejando os próprios alunos abdicar de seu uso. Em 1907 tentou-se abolir as capas na universidade, tendo-a como um dos motivos das greves estudantis, como se ela criasse no inconsciente daqueles maiores poderes. A publicação do Decreto nº 10.290/1924, procedeu na nacionalização da capa e batina nas escolas e ensino superior como Traje Nacional do Estudante Português, claro, que com as devidas adequações. Todos os anos, centenas e centenas dos Capa Negra se alçam em voo se desprendendo das fitas coloridas das praxes, dos anos investidos no banco da faculdade, entre lembranças dos dias, dos meses, dos anos em que se fazia necessário estar longe da família encravada numa aldeia distante, ou quiçá de um momento em que um almoço ou jantar se teria suprimido, pois o dinheiro não fora suficiente. Mas também se lembrarão dos instantes em que compartilharam um quarto com o amigo, que lhe estendera a mão no ombro quando preciso. Recordar-se-ão, ainda, das noites não dormidas, do fado em regozijo em cada canto, em cada serenata e das malas carregando sonhos, algumas poucas roupas, entre o trem da estação e os sapatos avelhantados em direção aos becos. Todos os anos, centenas e centenas dos Capa Negra se alçam em voo nas mantilhas passadas tantas vezes de geração em geração, puídas pelo tempo, arquivando histórias e memórias, imbuídas de incontáveis significados. A capa há de permanecer íntegra. Seus possuidores também. A Queima das Fitas terá emancipado os calouros e marcado o fenecimento de uma etapa estudantil para os veteranos. O voo dos Capa Negra estará sempre no imaginário lusitano. Muito além das façanhas do Batman, os Capa Negra voejam para um mercado de trabalho ínfimo e têm a missão heroica de combater e afugentar os curingas que ambicionam a todo custo aniquilar a venerável “Golden City”. (Cristiane Lisita é jornalista, advogada e escritora)

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