terça-feira, 27 de maio de 2014

O bete

Por Pedro Nolasco
Há já bem tempo que ninguém mais pratica o bete. Sequer nos consta que o façam por aí, noutros rincões da Federação Brasileira. Sob as bençãos dalguma Federação Regional de Bete. Quer dizer, ninguém sabe mais o que foi o bete. Nem mesmo sabemos se dicionário algum o traz registrado. O esporte bretão o fez decididamente bater em retirada, por ser a gente brasileira muito influenciável. Muito permeável às manifestações além fronteiras. Nossos avós o praticavam deveras. Assim, os pais de nossos avós. Suas origens perdem-se no alvorecer dos tempos. Não há muito, por meados da década de 1960, ou princípio de 1970, era possível ver a molecada de Goiânia com as suas tabuinhas ou tacos rústicos, a defender a respectiva casa ou rebater a pequena bola com eles; senão trocar de lugar entre si ou atirar a bola rasteiro ou rasteirinho. Depois, a modalidade esportiva foi sumindo das ruas e campos; para acabar de vez. Como acabam de vez as invenções visceralmente brasileiras, que vêm de acabar como coisa de pouca valia ou velharia sem importância. O que tem valor é o que vem de fora. Mormente dos centros mais adiantados. Isto, dos anos 80 pra cá. Há tratados sobre línguas extintas. Oxalá houvesse uns sobre desportos extintos. Nem íamos mais nos lembrar dele, não fosse magistral artigo de Hugo de Carvalho Ramos na revista A Informação Goiana, a 15 de maio de 1919, sob o título “Desportos Nacionais – O Bete”1. Nesse tempo, princípio do século XX, o bete ainda resistia brava e determinadamente à invasão alienígena do foot-ball. Melhor, do esporte bretão. Até com a bravura dos esportes autóctones. “E por isso mesmo, porque não conseguiu desalojá-lo, merece aqui este desporto particular notícia”. Diz Hugo. Resistência a que não foram capazes outros esportes. No escrito do genial autor das Tropas e boiadas se diz ter o foot-ball feito “bater em retirada” a carniça, apreciada pelos adolescentes das capitais, do mesmo jeito que vai fazendo cair no olvido em Goyaz, o alecrim-do-carmo, o bacondê (tempo será), a corre-coxia, a patrulha (matula), o alcoito, a peteca, etc., da petizada, que fizeram bater em retirada a cabra-cega, a galinha-na-poupeira e outros recreios, da fase infantil, tendo o esporte bretão “apenas a lutar naquele rincão brasíleo com o bete, jogo do rapazio, genuinamente popular.” E o escritor goiano descreve o modus faciendi dele. Procede-se assim: Tal como foi e é praticado, consta do seguinte: no campo escolhido, de dez metros de extensão, arma-se em cada extremidade uma casa instável: um esteio de decímetro de altura, sob dois pauzinhos do dobro ou triplo do comprimento. Os jogadores, em número de quatro, tirada a sorte, postam-se dois, armados de tábuas apropriadas, em frente das casas; os outros ficam “na bola”, atrás das mesmas. A bola é do tamanho de uma laranja, de borracha maciça de mangabeira (cujo leite se apanha nas redondezas e é ali preparado), ou mesmo de pano, rija, que o jogador, passando de trás para a frente da sua casa, atira à outra, rasteiro, rasteirinho ou “pula-pula”, como à peça o “do pau” contrário. Colocado um metro à frente da casa, este último a defende, rebatendo a esfera com a tábua, e faz um ponto, correndo e trocando de lugar com o parceiro oposto, ou tantos pontos quantas mudanças permita a distância em que foi arrojada a esfera. Se o dono da bola consegue apanhá-la e, voltando célere, desfazer uma das casas, enquanto os que se acham “no pau” trocam de lugares, passam os da bola para “o pau”, o mesmo acontecendo quando o antagonista não rebate a esfera, desmanchando esta a sua casa. Atente para o que eram as dificuldades do princípio do século XX. O que hoje parece corriqueiro, como sair de casa para comprar uma pequena bola de borracha, que existe aos milhares em lojas de artigos esportivos; não o era há 92 anos, quando não se encontravam bolas de borracha assim tão facilmente, que, em sua maioria, eram feitas com o leite da mangaba; senão feitas de pano. Bem, sem mais delongas, quem dera ressuscitássemos o bete. (Pedro Nolasco de Araujo, mestre, pela PUC-Goiás. Em Gestão do Patrimônio Cultural, advogado, membro da Associação Goiana de Imprensa - AGI)

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